Experiência vale o que vale

Experiência vale o que vale

Experiência e especialização são palavras que soam semelhantes, razão pela qual são demasiadas vezes confundidas no mundo das duas rodas em que vivemos. 

Não quero com isso dizer que elas sejam necessariamente confundidas por não se saber o seu significado independente, o quero dizer é que muitos de nós assumem que ao se ser experiente, nos tornamos automaticamente especialistas, um erro honesto, mas grosseiramente perigoso. 
 
Por isso, no artigo desta semana vamos fundo nesta temática que tende a ficar esquecida, e que como tal, deve mais ativamente passar a fazer parte do conhecimento geral de todos os motociclistas.
 

QUEM NÃO SABE ENSINA 

Diz-se na gíria popular que quem não sabe ensina, no entanto, esse chavão popular está pejado de problemas.
 
Se por um lado remete para a ideia de que todos os educadores são executadores falhados e potencialmente frustrados, implica também que só os especialistas a fazer algo o devem ensinar.
 
Vamos fazer um exercício, pensem num qualquer desporto à vossa escolha, e pensem nos melhores atletas dessa modalidade.
 
Quase todos eles, senão mesmo absolutamente todos eles têm a tempo inteiro - ou no mínimo pontualmente - um treinador a seu lado, e se em muitos casos sem dúvida que esses treinadores foram excelentes executadores em seu direito, em muitos outros, não.
 
Isso assim o é porque o papel do treinador não é o de ser o melhor executador no presente, ou de o ter sido no passado.




Eu sou um instrutor certificado que nunca competiu em duas rodas, ou têm pretensão de o fazer. O meu amor pelas motas vêm da minha paixão de ensinar e de ver os meus alunos a evoluir, e não de acumular prémios ou de tentar ser o mais rápido ou exuberante. Isso não faz de mim e de outros como eu automaticamente maus instrutores, faz sim de nós, instrutores com percursos e recursos de especialização diferentes. Foto BN EnduroCamp


O papel do treinado é o de ser o melhor formador, e isso diz-nos que se o papel do atleta é especializar-se na sua disciplina, o do treinador é o de se especializar em como ajudar o atleta a conquistar esse objetivo.
 
Podemos por exemplo referir Bill Belichick, indiscutivelmente um dos grandes treinadores de futebol americano de todos os tempos, que no entanto, nunca jogou um minuto profissional do desporto que treina, ou mais perto de nós, José Mourinho, que contrasta uma invejável carreira como treinador com a de um jogador de baixo nível.
 
Por isso, está na altura de esquecermos a máxima de que quem não sabe ensina, ou mesmo dos níveis de especialização que alguns treinadores atingiram a nível competitivo ou lúdico, e começarmos a focarmo-nos no que conta, que é aprender a distinguir quem é especialista a fazer, de quem especialista a ensinar.

TENHO EXPERIÊNCIA 

Seja como treinadores, alunos, ou atletas, somos todos seres humanos que crescemos a realizar as mais variadas tarefas repetitivas, tornando-nos por definição, experientes na sua execução. 

Comer, conversar, dormir ou até mesmo tentar escolher os números vencedores do Euromilhões semana após semana, são somente alguns exemplos que podemos citar. 

No entanto, essa experiência acumulada não nos torna minimamente especialistas, como podemos rapidamente provar com uma simples consulta com um nutricionista, terapeuta de fala ou de sono, ou até com uma verificação da falta de prémios milionários que depositámos na conta ao longo dos anos.

Acredito que todos podemos concordar com isso, o que me deixa ainda mais confuso quanto ao motivo pelo qual nós, como pilotos, assumimos que somos imediatamente especialistas de condução apenas porque somamos muitos km de experiência, especialmente quando se trata de fora de estrada. 




Muitos pilotos apresentam conduções muito rápidas e exuberantes, com uma larga percentagem deles a somarem muitos kms de experiencia lúdica e/ou competitiva. Isso não é no entanto sinónimo de boa técnica, como esta e outras imagens o demonstram. Imagem hiconsumption.com


Os argumentos mais comuns afirmam que "não houve um trilho intransponível" ou que "raramente caio e nunca tive uma lesão", elevando automaticamente aqueles que o reivindicam ao estatuto de especialistas. 

Em teoria, posso concordar até certo ponto, mas quando pressionados por respostas mais detalhadas sobre as suas conquistas, a armadura que muitos pilotos autoproclamados de especialistas defendem com orgulho, começa a mostrar fissuras. 

Permitam-me que vos guie pelo seguinte cenário hipotético. 

Imaginem um piloto extremamente experiente, com mais de 100.000 kms de fora de estrada pelos mais diversos países, com as mais variadas motas, e sobre os mais diferentes tipos de clima e terreno, e que está agora a preparar mais uma das suas épicas aventuras. 

Já no track, o nosso destemido piloto encontra pela frente uma secção de areia fofa e profunda de cerca de 10 kms, que divide a sua posição atual do seu destino.
 
No entanto, como motociclista experiente que é, ele já encontrou areias fundas no passado, pelo que o que vê pela frente não é minimamente motivo de preocupação. 

Assim, e tal como antes, ao chegar ao início da areia, ele diminui a sua velocidade, senta-se e, como sempre, pedala quando perde o equilíbrio, luta para manter momento, empurra e levanta a mota quilômetro após extenuante quilômetro, imbuído de uma força de vontade inabalável que jamais alguém lhe pode retirar. 




Quedas fora de estrada, principalmente em areia, são comuns, e parte do desporto, mas isso não têm de ser sinónimo de sofrimento constante. Imagem advrider.com


Após um par de horas esgotantes e exaustivas, a sua provada escolha técnica para enfrentar areia permite-lhe mais uma vez reivindicar vitória, dando lugar a que mais uma medalha seja acrescentada ao seu quadro de honra como piloto experiente. 

Este cenário é demasiado comum para muitos pilotos, e em termos de aventuras e histórias para contar, é inigualavelmente imbatível, mas a mim, falta-me conseguir ver onde este tipo de experiência se traduz em especialização técnica. 

Vejo sem duvida a glorificação da tenacidade humana, tal como uma vontade inabalável de superar obstáculos, vejo até caráter e convicção, mas mais uma vez, nada disso é sinônimo de especialização. 

Este cenário diz respeito a aventura, mas muitos outros poderiam ser citados em termos competitivos, como estou certo que podem imaginar.

Então, se repetição com consecutivos sucessos não chega, o que torna alguém um especialista em coisa alguma? 

SOU UM ESPECIALISTA 

Vamos então voltar a pegar no mesmo cenário para podermos fazer uma comparação lado a lado com um piloto dotado de um trunfo diferenciador.

Já definimos como a experiência deu ao nosso primeiro aventureiro as ferramentas necessárias para superar o nosso cenário fictício, por isso, e para
não criarmos disparidades, vamos assumir que ambos os pilotos estão par a par em termos de hardware e forma física.
 
Assim, vamos assumir que ambos estão a usar a mesma mota, com a mesma carga, os mesmo pneus, têm a mesma forma e físico, basicamente tudo igual, sendo que a única diferença, é que o segundo aventureiro em vez de muita experiência, teve formação certificada sobre condução em areia.



Formação certificada de areia é um experiência muito especial dentro do mundo da formação fora de estrada, e uma que muitos escolhem deixar de lado. Imagem 
blog.motorcycle.com


Dotado desta vantagem, o nosso segundo destemido passa então os mesmos 10 km de areia sem qualquer dificuldade, permitindo-se ter uma travessia mais rápida, fácil, segura, e eficaz.
 
Este é um cenário hipotético, no entanto, um com quase todos já nos deparamos nos tracks quando vemos alguém com a mesma moto que nós, os mesmos pneus, e aparentemente a mesma forma física a passar com facilidade por locais onde nós sentimos muita dificuldade.

Isto diz-nos que ser capaz de sobreviver continuamente a algo não significa que se tenha desenvolvido a melhor maneira de o fazer, nem tão pouco uma especialização, algo perfeitamente natural num desporto tecnicamente contraintuitivo.

Ainda assim, ser especialista em algo não significa que se conheçam todos os truques, significa somente que se domina pelo menos um, e que se está sempre disposto a continuar a adicionar mais ao nosso arsenal de escolhas. 

Assim, um especialista é alguém que conhece seus pontos fortes e fracos, e mesmo que isso não substitua anos e quilômetros de prática, faz uma enorme diferença quando se fica de frente com um problema. 

O AMANHECER DE UM NOVO DIA 

Para a maioria de nós, os nossos anos de formação académica básica foram relativamente os mesmos, permitindo-nos aprender as competências institucionalizadas.
 
Fomos para a escola com níveis variáveis de birra e, com mais ou menos persuasão, acabamos por aprender os nossos ABCs. 

Independentemente do nível de sucesso demonstrado ao longo desse percurso, as competências aprendidas, ou seja, a especialização que começamos a desenvolver, nunca parou de aumentar com o tempo, ou seja, cresceu com a nossa experiência. 



Mais tempo de prática não se traduz numa melhor especialização se essa experiência não estiver assente numa base sólida. Meme da me.me


O efeito que a experiência têm no tempo, como o promotor de uma especialização cada vez maior, não é diferente quando se trata de conduzir motas.
 
Então, a questão aqui não é necessariamente o quão experiente se é, mas sobre que tipo de especialização é que essa experiência está a ser construída. 

Se és um piloto de todo o terreno autodidata, existe uma alta probabilidade de que estejas a construir a tua experiencia sobre uma base de maus hábitos, e de uma abordagem ocasionalmente perigosa para com alguns movimentos técnicos.
 
Com isso em mente, quanto mais especialista fores em algo assente sobre uma base instável, mais riscos corres, e mais difícil te vai ser corrigir esses erros no futuro. 

Por outro lado, se estás agora a começar no fora de estrada e decidiste aprender os teus ABCs da terra com a ajuda de um profissional, as tuas bases vão estar bem definidas, e independentemente do sucesso alcançado enquanto definiste esses alicerces, a experiência que vais adquirir sozinho vai ser drasticamente diferente.
 
Esta abordagem não só te vai levar até aos teus objetivos, como caso sintas que isso não aconteceu, te vai permitir entender quando e se precisas de mais treinos base, para garantir que vais sempre continuar a evoluir sobre princípios consistentemente seguros e sólidos. 

Isto diz-nos então que a chave para o sucesso não é obrigatoriamente experiência ou especialização, mas sim uma profunda e honesta autoavaliação.

Embora eu acredite que todos devemos passar por instrução profissional e certificada - como é meu discurso habitual - não julgo aqueles que decidem ignorá-lo, se seus objetivos relativamente a especialização, corresponderem exatamente ao que é possível alcançar apenas com experiência empírica.




O efeito Dunning-Kruger explica perfeitamente o processo de aprendizagem fora de estrada, e a razão pela qual muitos acham que não precisam de passar por ele.


Agora, se te queres tornar num piloto seguro, consistente, e proficiente, então experiência, por mais kms que isso signifique, dificilmente será a única ferramenta que vais precisar para atingires esse objetivo.
 
Portanto, sê honesto contigo mesmo, sê claro relativamente ás tuas metas, e traça o melhor plano para as alcançares da forma mais rápida e segura.

Quando se trata de condução fora de estrada, deve-se sempre misturar treinos técnicos com profissionais certificados para construir bases de especialização, com kms de experiência para cimentar esses ensinamentos quilômetro após quilômetro. 

AUTO AVALIAÇÃO

Ao sermos honestos com nós próprios temos de partir de um princípio básico, o de que não sabemos o que não sabemos.
 
No entanto, no mercado em que vivemos, nada nos apoia nesse sentido.
 
Desde marcas que falam em motos mágicas, até amigos a querer dar conselhos em passeios domingueiros, não esquecendo os milhões de horas de How to’s disponíveis no YouTube, critérios para auto avaliações honestas são difíceis de encontrar e criar.
 
Não quero no entanto dizer que não existam conselhos brilhantes nos passeios domingueiros, ou que o YouTube não esteja pejado de informação absolutamente incrível e fidedigna, ainda assim, essas pérolas de informação tendem a diluir-se num mar de confusão sem um farol que nos guie.
 
Com isso em mente, em vez de nos focarmos na forma como devemos executar alguns movimentos técnicos, ou abordar algumas dificuldades, devemos antes focarmo-nos no porque das respostas ás nossas perguntas.



Ferramentas como esta da BN EnduroCamp podem ajudar-te a dar os primeiros passos na tua autoavaliação. Podes consultar as regras deste método aqui: 
https://bn-adv.com/pt/pages/route-and-rider-rating-system


Devemos então perguntarmo-nos se sabemos porque devemos usar esta ou aquela pressão de pneus, em vez de recitar a resposta que nos deram no Facebook, devemos perguntarmo-nos se entendemos o porquê desta ou daquela posição corporal em vez de a tentar imitar sem questões, entre outros exemplos possíveis.
 
A nossa auto avaliação deve então ser feita na base do “porquê”, e não na base do “como”.
 
Isto porque fora de estrada, como desporto dinâmico e em constante mudança que é, garante que não vamos encontrar duas curvas ou subidas iguais, pelo que é um desporto que não deve ser feito por imitação pura, ou por citar respostas standard.
 
Um outro recurso extremamente válido, é o de falar com um instrutor de confiança, tal como ler literatura dedicada que se foque nos porquês, enquanto mantemos em mente a todo o tempo que nunca vamos saber tudo, e que por isso, simplesmente não sabemos o que não sabemos.

Assim, independentemente das escolhas que fizeres quanto á tua auto avaliação, lembra-te, experiência não é o mesmo que especialização, e especialização, significa muito pouco sem uma boa dose de experiência.

 

Your riding buddy is trying to kill you!
 


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